sábado, 4 de agosto de 2007

reflexões de Alberto Manguel sobre o tema


"o leitor ideal é o escritor no instante anterior à escrita. o leitor ideal não reconstroi um texto: recria-o. o leitor ideal tem uma capacidade ilimitada de esquecimento. o leitor ideal não se interessa pelos escritos de michel houllebecq. o leitor ideal sabe aquilo que o escritor só intui. o leitor ideal subverte o texto. o leitor ideal não se fia na palavra do escritor. o leitor ideal procede por acumulação: cada vez que lê um texto, agrega um nova capa de memória ao conto. todo o leitor ideal é um leitor associativo. lê como se todos os livros fossem a obra de um único escritor, prolífico e intemporal. ao fechar um livro, o leitor ideal sente que, se não o tivesse lido, o mundo seria mais pobre. o leitor ideal é como joseph joubert que arrancava dos livros da sua biblioteca as páginas que não gostava. o leitor ideal tem um sentido de humor perverso. o leitor ideal lê como se toda a literatura fosse anônima. o leitor ideal usa com prazer o dicionário. o leitor ideal julga o livro pela sua capa. Paolo e Francesca não eram leitores ideais, já que confessaram a Dante que, depois do primeiro beijo, não leram mais. o leitor ideal tinha dado o beijo e continuava a ler. um amor não exclui o outro. o leitor ideal partilha a ética de Dom Quixote, o desejo de madame Bovary, o espírito aventureiro de Ulisses, a desfaçatez de zazie, enquanto dura a narração. o leitor ideal é politeísta. Robinson não é um leitor ideal. lê a Biblia para encontrar respostas. o leitor ideal lê para encontrar perguntas. todo o livro, bom ou mau, tem o seu leitor ideal. para o leitor ideal, todos os livros são, em certa medida, a sua autobiografia. o leitor ideal tem uma nacionalidade precisa. às vezes um livro deve esperar vários séculos para encontrar o seu leitor ideal. Blake precisou de 150 anos para encontrar Northrop Frye. Pinochet, ao proibir Dom Quixote por temer que o livro pudesse ler-se como uma defesa da desobediência civil, foi o seu leitor ideal. 'há três classes de leitores: a primeira, aqueles que gostam de um livro sem o julgarem; a terceira, aqueles que o julgam sem gostarem dele; a outra, entre as duas, os que julgam apesar de gostarem ou gostam apesar de julgarem. estes últimos dão nova vida a uma obra de arte, e não são muitos' disse Goethe numa carta a Johann Friedrich Rochlitz. os leitores que se suicidaram depois de lerem Werther não eram leitores ideais e apenas meros sentimentais. o leitor ideal deseja chegar ao fim do livro e, ao mesmo tempo, que ele não acabe. o leitor ideal é (ou parece ser) mais inteligente que o escritor. e por isso não o diminui. as boas intenções não fazem leitores ideais. o Marquês de Sade: 'só escrevo para quem pode entender-me, e estes leram-me sem correrem perigo'. o Marquês de Sade enganou-se: o leitor ideal corre sempre perigo. o escritor nunca é o seu próprio leitor ideal. a literatura depende, não de leitores ideais, mas de leitores suficientemente bons."
alberto manguel excertos da crônica 'a pie de página' babelia (el pais), 29.11.2003

Um comentário:

Fábio Mayer disse...

É algo complicado.

Dependendo do ponto de vista do autor, o leitor ideal pode ser apenas o leitor impossível, aquele que extrai do texto apenas a mensagem que o autor queria dar.

Vamos continuar no mesmo exemplo do texto bíblico.

Digamos que a Bíblia tenha sido escrita por um prócer de uma determinada religião: ele queria que ela fosse apenas um manual de instruções a embasar apenas aquela religião mas, como os leitores dele não eram os ideais para ele, começaram a interpretá-la.

E a partir da interpretação nasceram correntes interpretativas, dúvidas, doutrinas e por fim novas religiões fundadas no mesmo texto, mas interpretando-o de modo diferente.

Enfim, o leitor ideal para um estudioso como Manguel, é aquele que interpreta o texto, discute-o, discorda e agrega à sua interpretação a experiência personalíssima. Porém, o leitor ideal para alguns é aquele que aceita sem discutir o texto, como se dogma fosse...